Homero / Ilíada

Ἰλιάς Ilias Il. (ou Hom. Il.) -750 / -725

A Ilíada é a mais antiga e a mais extensa das obras atribuídas ao lendário poeta Homero; é, também, o mais antigo texto literário da Europa e da cultura ocidental.

O título do poema deriva de “Ílion”, nome alternativo da mítica cidade de Troia, que possivelmente corresponde ao nível VIIa da antiga cidadela descoberta em Hisarlik, Turquia, por Schliemann[1].

Acredita-se que a Ilíada tenha sido originalmente uma composição oral, memorizada e recitada em ocasiões especiais, composta entre -750 e -725 (Janko, 1982) a partir de lendas e de memórias do Período Micênico e da Idade das Trevas. Somente no final do século -VI, dois séculos mais tarde, os versos foram colocados na forma escrita.

O poema era uma das obras mais apreciadas da Antiguidade, constantemente citada por filósofos e outros eruditos, e exerceu enorme influência tanto na literatura romana quanto na cultura ocidental como um todo.

Argumento básico

O assunto do poema, retirado das lendas do Ciclo Troiano, cobre apenas um período de mais ou menos 45 dias do décimo ano da Guerra de Troia. O tema principal é a ira do herói Aquiles que, afrontado por Agamêmnon, filho de Atreu, comandante do exército grego, retira-se da luta.

A enunciação do tema ocorre logo no início da epopeia (1.2-7). O narrador sintetiza o enredo em apenas sete versos:

Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκε, πολλὰς δ' ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ' ἐτελείετο βουλή, ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς. Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu, funesta, que inumeráveis dores aos Aqueus causou e muitas valorosas almas de heróis ao Hades lançou, e a eles tornou presa de cães e de todas as aves de rapina; cumpriu-se o desígnio de Zeus, o qual desde o princípio separou em discórdia o filho de Atreu, senhor de guerreiros, e o divino Aquiles.

Privados do auxílio de seu mais poderoso combatente, os gregos sofrem revés sobre revés e são acuados pelos troianos diante de suas próprias naus. No último momento, porém, Aquiles se reconcilia com Agamêmnon, volta ao combate e rechaça o inimigo.

Alguns comentadores antigos, por causa disso, diziam que o poema era mais uma Cólera de Aquiles do que uma Ilíada, uma história de Ílion.

Cenário e personagens

A ação transcorre na sitiada cidadela de Troia e arredores, e no acampamento dos gregos, que fica bem próximo, entre a cidadela e as naus ancoradas. Algumas cenas se passam no Olimpo, morada dos deuses, e nas montanhas próximas de Troia.

A quantidade de personagens da epopeia é enorme; uma estimativa conservadora chegaria a duas ou três centenas, pelo menos, entre deuses, heróis, mulheres e participantes incidentais, muitos sem nome.

miniaturaAquiles

Os deuses têm importante participação em todos os episódios do poema e interagem frequentemente com os personagens humanos; alguns deles chegam ao ponto de lutar em diversas batalhas. Do lado dos gregos, estavam Atena, Hefesto, Hera e Posídon; do lado dos troianos, Afrodite, Apolo, Ártemis e Ares. Zeus trabalhou, em diferentes momentos, a favor dos gregos ou dos troianos.

Os gregos

Destacam-se os heróis, líderes dos vários contingentes que compõe o exército.

Aquiles chefe dos mirmidões, filho de Peleu, rei da Ftia, e da nereida Tétis Agamêmnon comandante dos gregos, rei de Micenas e irmão de Menelau Ájax, o maior primo de Aquiles, filho de Télamon, rei de Salamina Ájax, o menor filho de Oileu, rei dos Lócrios Antíloco filho de Nestor, rei de Pilos Calcas adivinho que acompanhava os gregos Diomedes rei de Argos, filho de Tideu Fênix preceptor de Aquiles Idomeneu rei de Creta, neto de Minos Menelau ex-marido de Helena, rei de Esparta, irmão de Agamêmnon Nestor o mais idoso dos gregos, rei de Pilos, pai de Antíloco Odisseu rei de Ítaca Pátroclo um dos mirmidões, fiel amigo de Aquiles Teucro irmão de Ájax, filho de Telamon, rei de Salamina

Os troianos

Do lado troiano, além dos heróis troianos e seus aliados, diversas mulheres têm papel proeminente.

Alexandre / Páris filho de Príamo, irmão de Heitor e Cassandra, marido de Helena Andrômaca esposa de Heitor Cassandra adivinha, filha de Príamo, irmã de Heitor e de Alexandre Eneias filho de Anquises e Afrodite, primo de Heitor, Cassandra e Alexandre Glauco guerreiro lício, neto de Belerofonte Hécuba esposa de Príamo Heitor filho mais velho de Príamo, irmão de Alexandre Helena filha de Zeus e Leda, ex-esposa de Menelau, esposa de Alexandre Pândaro guerreiro lício Príamo rei de Troia, marido de Hécuba, pai de Alexandre, Heitor e Cassandra Sarpedon guerreiro lício, filho de Zeus miniaturaHelena e Páris

Estrutura do poema

A Ilíada tem um total de 15.693 versos e se divide artificialmente em 24 livros ou cantos de tamanho desigual, identificados pela tradição manuscrita com as letras maiúsculas do alfabeto grego (Α, Β, Γ, Δ, Ε, Ζ, Η, etc.). O texto ocupa cerca de 440 páginas da antiga edição de Allen (1931), distribuídas em três volumes.

Poderíamos separar o poema em pequenas unidades narrativas ou episódios, mais ou menos autônomos, sempre narrados por Homero, embora muitas vezes ele dê voz aos personagens para que contem suas histórias.

Os episódios dos primeiros quatro livros da Ilíada se caracterizam pelo restabelecimento ou recordação das causas da guerra, tanto no plano divino quanto no plano humano; os eventos se passam, de certa forma, como se a guerra não tivesse começado há nove anos. Nos livros 5-17 são descritos os reveses dos gregos na ausência de Aquiles e, posteriormente (livros 18-24), sua avassaladora e decisiva participação na batalha, que culmina na morte do principal defensor de Troia.

Resumo

Os 24 livros da Ilíada

No livro 1, o acampamento grego é assolado por uma peste, provocada por Apolo. A solução do problema leva à querela entre Agamêmnon e Aquiles, que afasta Aquiles da luta e desencadeia a intervenção de Zeus.

No livro 2, começa a intervenção de Zeus em favor dos troianos. Agamêmnon tem um sonho enganador, põe as tropas à prova e o narrador apresenta um catálogo dos contigentes gregos e dos troianos e seus aliados.

No livro 3, uma trégua e um duelo entre Menelau e Páris pode por fim à guerra, mas Afrodite salva Páris da derrota e, no livro 4, a trégua é rompida por intervenção divina. Agamêmnon passa as tropas em revista e gregos e troianos retomam os combates.

Os livros 5 a 9 descrevem a excelência guerreira de Diomedes, Heitor e Ájax, os reveses dos gregos e o inútil apelo à volta de Aquiles. No livro 10, Diomedes e Odisseu fazem uma incursão noturna no acampamento dos aliados troianos, muito bem sucedida.

Os livros 11 a 15 apresentam as façanhas de vários heróis gregos e troianos, o engano de Zeus, o ataque dos troianos às muralhas e sua chegada aos navios gregos. Os livros 16-17 retratam as proezas de Pátroclo, sua morte e a luta pelo seu corpo.

Nos livros 18 a 22, Aquiles renuncia à sua cólera e, com nova armadura, volta à batalha, põe em fuga os troianos e mata Heitor, seu melhor guerreiro.

O livro 23 descreve o funeral de Pátroclo e os jogos fúnebres em sua honra; o livro 24, o resgate do corpo de Heitor e seus funerais.

Dialetos, linguagem e estilo

Dado o caráter oral da composição e da transmissão do poema em vários locais dos antigos territórios gregos, a linguagem da Ilíada se tornou uma grande mistura de dialetos antigos e de formas artificiais, chamada convencionalmente de linguagem homérica. Essa linguagem naturalmente nunca foi utilizada por nenhuma comunidade grega e tem apenas expressão literária.

Os dialetos são o ático, o jônico e o árcado-cipriota, com predomínio do dialeto jônico e, em segundo lugar, do eólico; não há palavras ou expressões do dialeto dórico. As formas dos vocábulos pertencem a diferentes épocas da história da língua grega e algumas delas são certamente artificiais, com radical de um dialeto e desinências de outro.

O metro utilizado é o hexâmetro dactílico e, muitas vezes, as diferentes formas dialetais / artificiais são utilizadas para acomodar palavras e expressões às conveniências da métrica.

Epítetos de deuses e heróis, expressões, versos inteiros e descrições são repetidos com frequência, configurando expressões formulares que são inseridas no poema de acordo com as necessidades métricas e com a situação descrita. No livro 14, por exemplo, o poeta se refere a Hera como “Hera do trono dourado” (153), “soberana Hera” (197, 263, 329), “soberana Hera de olhos bovinos” (159, 222) e “Hera de alvos braços”(277) e “Hera, deusa mais honrada, filha do grande Crono” (194, 243).

Essa técnica, típica das composições orais, facilita a memorização e otimiza a declamação, além de possuir uma estética própria, certamente apreciada pelas plateias antigas. As repetições marcam também o paralelismo ou o contraste entre algumas cenas, contribuem para a estrutura do poema e conferem um sentido de unidade a todo o conjunto.

Outra importante característica da linguagem homérica é o uso extensivo de símiles, comparações entre dois elementos contrastantes, um deles frequentemente associado a tempos de paz (ver, por exemplo, vv. 2.455-79).

Manuscritos, edições e traduções

A Ilíada, ao lado da Bíblia, possui uma das mais extensas tradições manuscritas e papirológicas conhecidas. O estabelecimento do texto remonta possivelmente ao Período Helenístico, porém os mais antigos papiros com passagens do poema datam do século II, aproximadamente.

miniaturaManuscrito Venetus A

Eis uma pequena lista dos manuscritos mais importantes: Venetus A (Marcianus gr. 454 = 882, sæc. X) e Marcianus gr. 453 (sæc. XI), da Biblioteca de São Marcos em Veneza; Laurentianus gr. xxxii,3 (sæc. XI) e xxxii,15 (sæc. XI/XII), da Biblioteca Laurenciana de Florença; o Genevensis gr. 44 (sæc. XIII), de Genebra; o Lipsiensis 32 (sæc. XIV), de Leipzig; o Londinensis Townleianus 86 (1059), de Londres; e o Athous Vatopedi 592 (sæc. XV), da Biblioteca do Monastério de Vatopedi (Monte Athos).

A editio princeps é a de Demetrius Chalcondyles, Florença (1488), em dois volumes; seguiram-na a Aldina (1504, 1517 e 1524), de Veneza, e a Juntina (1519), de Florença. A edição de Genebra de 1566 (de Henri Estienne) tornou-se a Vulgata[2] do texto (Aubreton, 1968).

As modernas edições da Ilíada são numerosas; as mais importantes são a de Dindorf (1826 e 1855), a de Pierron (1869/1883), a de Ludwich (1889/1907), a de Ameis, Hentze e Caer (1883/1927), a de Monro e Allen (1901/1908) — adotada aqui —, a de Leeuwen (1917), a de Mazon (1937/1938), a de van Thiel (1996) e, finalmente, a de West (1998).

Passagens selecionadas

A Ilíada é uma das obras gregas mais traduzidas para o português. As traduções mais antigas são as de José Maria da Costa e Silva (1811 e 1830), João Félix Pereira (1891) e Manuel Odorico Mendes (1874); as mais recentes, as de Carlos Alberto Nunes (1962), Eusébio Dias Palmeira (1999), Haroldo de Campos (2002), Frederico Lourenço (2005), Christian Werner (2018) e Trajano Vieira (2020).

Há também grande quantidade de traduções de episódios e de livros isolados em coletâneas, periódicos e livros didáticos portugueses e brasileiros, sem contar dissertações de mestrado e teses de doutorado.