1190 palavras

O leão de Nemeia

πρῶτον μὲν οὖν ἐπέταξεν αὐτῷ τοῦ Νεμέου λέοντος τὴν δορὰν κομίζειν·.

Primeiro, 〈Euristeu〉 ordenou-lhe trazer a pele do leão de Nemeia.

O primeiro dos 12 trabalhos que Héracles realizou a mando de Euristeu foi matar o leão de Nemeia (gr. λέων Νεμέου).

Sumário

Esse feroz leão era de tamanho descomunal e aterrorizava os arredores dos montes Treto e Apesas, em Nemeia, na Argólida, atacando rebanhos e pessoas.

O monstruoso animal, filho de Ortro e Quimera — ou, talvez, de Equidna[1] —, tinha a proteção de Hera, que almejava a destruição de Héracles e estabeleceu o leão em Nemeia para que ele, no futuro, destruisse o herói. Paradoxalmente, a região de Argos era dedicada à deusa e protegida por ela.

Héracles não sabia, mas a pele do leão era impenetrável. Armado de arco e flecha, espada e pesadíssima clava, o herói dirigiu-se à área onde vivia o monstruoso leão. Ao encontrá-lo, atingiu-o primeiro com suas flechas, facilmente repelidas pela invulnerável pele do animal. Aproximou-se e tentou matar o monstro com a espada, também sem sucesso. A seguir, aplicou-lhe violento golpe de clava no crânio, que tonteou o animal somente durante alguns segundos.

miniaturaHéracles domina o leão

Héracles deu-se conta, finalmente, que nada era capaz de perfurar a pele do leão. Envolveu então a fera com os braços e tanto apertou que o monstro morreu asfixiado. Morto o leão, Héracles retirou-lhe a pele cortando-a com as próprias garras e revestiu-se com a pele invulnerável, daí em diante uma de suas marcas registradas[2].

Antes de encontrar o monstro, Héracles recebeu a hospitalidade de um camponês, Molorco, em Cleonas. Ele ia preparar-lhe seu único carneiro, mas Héracles propôs que ambos sacrificassem o animal a Zeus, se o herói voltasse vitorioso em 30 dias; mas, se não retornasse no prazo, Molorco ofereceria um sacrifício a ele, Héracles[3]. Zeus, naturalmente, recebeu o seu carneiro... e, nessa ocasião, Héracles teria instituído os Jogos Nemeus em honra do pai.

[Apolodoro] conta que Héracles levou a carcaça do leão a Micenas e Euristeu, assustado, ordenou que daí em diante Héracles deveria deixar os espólios de suas façanhas na entrada da cidadela e que lidaria com ele através de seu arauto, Copreu.

De acordo com outros acréscimos tardios ao mito arcaico, Zeus colocou o leão nos céus, formando uma das constelações do zodíaco, a terceira em tamanho: Leo, ou Constelação do Leão[4].

Arcaicas e clássicas: Hesíodo, Teogonia 326-32; Pisandro F 1; Paniassis F 6-7; Estesícoro F 229; Píndaro, Ístmicas 6.47-8; Baquílides 9.6-9 e 13.46-54; Sófocles, Traquínias 1092-3; Eurípides, Héracles 359-63 e 455-6; Calímaco, Aetia F 54–60j Harder (Victoria Berenices); [Teócrito] 25.153-281. Pós-classicas: [Eratóstenes], Catasterismos 1.12; Diodoro Sículo 4.11.3-4; [Apolodoro] 2.5.1; [Higino], Fábulas 30.

Variantes

Apolodoro afirma que o pai do leão era Tífon; Epimênides (F 2) e Eliano (História dos animais 12.7), entre outros, dizem que ele foi engendrado pela deusa Selene, que o colocou em Nemeia a mando de Hera. Herodoro (F 4) relata que ele caiu do céu e Calímaco (Hécale F 339) situou-o perto de Cleonas.

Lactâncio Plácido (Comentários à Tebaida de Estácio, 4.159-60) conta que um filho de Molorco foi morto pelo leão.

Segundo [Apolodoro] e Diodoro Sículo, Héracles encurralou o monstro em uma caverna antes de asfixiá-lo. Segundo Ptolomeu Quenos (apud Fócio, Biblioteca 190), a serpente que guardava o Jardim das Hespérides era irmã do leão de Nemeia e o herói perdeu um dos dedos durante a luta; e uma serpente nascida de Gaia teria ajudado Héracles a combater o leão.

Influências e recepção

miniaturaHéracles usa a espada contra o leão

A luta entre deuses, homens e leões é tema antigo, oriundo talvez da antiga Mesopotâmia, notadamente de histórias relacionadas a Enkidu e Gilgámesh e, ainda, ao Sansão bíblico. Em uma tabuinha de -1300/-1200, Gilgámesh usou uma pele de leão para expressar sua tristeza[5]. Bes, antigo e popular deus egípcio, era imaginado com traços leoninos e às vezes representado com uma pele de leão ou leopardo após o século -XVI. Há também numerosas representações de Melcarte, deus fenício conhecido pelo menos desde o século -X, vestindo uma pele de leão.

Aparentemente, o mito grego estava bem estabelecido da segunda metade do século -VII em diante; a Teogonia hesiódica e cenas de vasos de figuras negras[6] estão entre os mais antigos testemunhos. Imagens de Héracles vestindo a pele do leão, i.e, posteriores ao 1º trabalho, remontam a mais ou menos -600.

O mito inspirou um drama satírico de Ésquilo, Leão (F 123); um poema de [Teócrito], o Idílio 25; um soneto de José-Maria de Heredia (1893); e um conto policial de Agatha Christie (1939). Heredia registrou, em particular, a aterrorizante imagem de Héracles com a pele do leão (Nemeia, 12-4):

Pois a sombra que aumentava com o crepúsculo
forma, sob a horrível pele que flutua em volta de Hércules,
misturando o homem à fera, um monstruoso herói.

Na arte, o 1º trabalho é justamente um dos temas mais representados em vasos, particularmente a partir do século -VI: há mais de 800 ocorrências documentadas, e.g. Londres 1856,1202.1 (-550/-540); Louvre CA1340 (c. -540); [Ilum. 1201] supra; e [Ilum. 0085]. Nas antigas métopas e relevos que representam os 12 trabalhos, e.g. as do templo de Zeus em Olímpia (-470/457), ele está sempre presente.

nó de Héracles

Durante o Período Greco-Romano, o intrincado nó que prendia a pele do leão em torno do pescoço do herói em várias cenas de vasos (e.g. [Ilum. 0921]) inspirou o “nó de Héracles” (gr. Ἡρακλεωτικὼν ἅμμα, lat. nodus Herculeus), presente em amuletos e obras de arte. Talvez por influência da força de Héracles e da invulnerabilidade da pele do leão, acreditava-se que tinha propriedades apotropaicas[7]. No início do século XX, foi adotado pelos escoteiros.

miniaturaP.Oxy. 2331: Héracles e o leão

Cenas de vasos, relevos, esculturas, moedas, mosaicos e outras manifestações artísticas representaram Héracles e o leão de Nemeia ininterruptamente, do Período Arcaico até nossos dias. O primeiro encontro entre o texto do mito e uma imagem representativa se deu na primeira metade do século III, em um poema ilustrado parcialmente conservado pelo P.Oxy 2331[8].

Da Idade Média em diante, vários artistas recorreram ao tema da luta entre o herói e o leão, e.g. Raoul Lefèvre (iluminura, 1200-1450); Jean d'Ypres (tapeçaria, c. 1500); Robinet Testard (iluminura, 1496-1500); Baldassare Peruzzi (afresco, c. 1511); Galeazzo Mondella (placa de bronze, c. 1500-25); Michelangelo (desenho, sæc. XVI); Francisco de Zurbarán (pintura, 1634); Peter Paul Rubens (pintura, c. 1615; gravura, c. 1620); Conrad Nicolaus Boy (grupo escultório, 1791); Eugène Delacroix (pintura, 1852); Max Klein (bronze, 1879).