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A hidra de Lerna

τὸ τρίτον Ὕδρην αὖτις ἐγείνατο λυγρὰ ἰδυῖαν
Λερναίην, ἣν θρέψε θεὰ λευκώλενος Ἥρη
ἄπλητον κοτέουσα βίῃ Ἡρακληείῃ.
καὶ τὴν μὲν Διὸς υἱὸς ἐνήρατο νηλέι χαλκῷ
Ἀμφιτρυωνιάδης σὺν ἀρηιφίλῳ Ἰολάῳ
Ηρακλέης βουλῇσιν Ἀθηναίης ἀγελείης.

Além disso, em terceiro lugar, versada no mal, gerou a Hidra de Lerna, onde a criou a deusa de alvos braços, Hera, terrivelmente irada com a força de Héracles. E matou-a o filho de Zeus, Héracles, com o implacável bronze, em companhia de Iolau, dileto de Ares, descendente de Anfitrião, pelos desígnios de Atena condutora-do-saque.

O segundo dos 12 trabalhos realizados por Héracles sob as ordens de Euristeu foi acabar com a hidra de Lerna (gr. Λερναῖα ὕδρα).

Sumário

A hidra era uma serpente aquática gigantesca e venenosa que aterrorizava a região de Lerna, Argólida, situada 10 km ao sul de Argos, perto da costa, na altura da parte norte do Golfo da Argólida. Essa área rica em fontes era pantanosa e, até o século XIX, possuía também um lago de água salgada.

A serpente era parte de uma família igualmente monstruosa: filha de Equidna e Tífon, tinha por irmãos Cérbero, o cão que guardava a entrada do hades; Ortro, o cão do gigante Gérion; e a Quimera[1]. Consta que a hidra foi criada por Hera, assim como o leão de Nemeia.

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Fig. 0283. Héracles, Iolau, a hidra e o
caranguejo por volta de -625/-600[2]

Nas fontes iconográficas mais antigas, a hidra já contava com várias cabeças, mas a quantidade variava de acordo com a imaginação de autores e artistas; Alceu, por exemplo, conta que eram nove; Simônides, cinquenta; Eurípides, mil... Inicialmente, o perigo representado pela serpente decorria apenas do tamanho e das múltiplas cabeças; novos perigos foram acrescentados progressivamente, como o mortífero veneno de sua picada (Estesícoro), a capacidade regenerativa das cabeças cortadas (Louvre CA598, Eurípides), a imortalidade de uma delas ([Apolodoro]) e o hálito venenoso ([Higino]). Em geral, duas cabeças nasciam no lugar de cada cabeça cortada.

Em Lerna, junto à fonte Amímone, Héracles atacou a hidra com o auxílio de Iolau, filho de seu meio-irmão Íficles, e a hidra foi ajudada por um caranguejo gigante que fisgava o calcanhar de Héracles durante a luta.

miniaturaHéracles, Iolau e a hidra de Lerna

Héracles teria derrotado a hidra com a espada, a clava e até mesmo com flechas, enquanto Iolau recorreu a uma ἅρπη, espécie de foice de cabo curto. Referências ao uso do fogo para cauterizar cada “pescoço” cortado, a cargo de Iolau, datam do final do século -VI, a julgar pela iconografia. A cabeça imortal decepada foi lançada em profundo buraco, em cima do qual Héracles pôs uma enorme pedra. Quanto ao caranguejo, uma simples pisada do herói eliminou a ameaça.

Héracles embebeu a ponta de suas flechas na bile (ou sangue) do monstro morto, tornando-as venenosas e mortíferas. E, finalmente, Hera colocou o caranguejo entre as estrelas, na Constelação de Câncer.


Arcaicas e clássicas: Hesíodo, Teogonia 313-8 (ver epígrafe supra); Alceu F 443; Simônides F 569; Pisandro F 2; Paniassis F 8; Estesícoro (F S15.col2.5-7); Helânico F 103; Sófocles, Traquínias 573-4; Eurípides, Héracles 419-24 e 1274-5; Íon 191-200; Herodoro F 23; Platão, Fédon 89c e Eutidemo 297c.
Posteriores: Paléfato 38; [Eratóstenes], Catasterismos 11; Diodoro Sículo 4.11.5; Ovídio, Metamorfoses 9.69-74; [Apolodoro], Biblioteca 2.5.2; Pausânias 2.37.4 e 5.17.11; Quinto de Esmira 6.212–19.
Documentos iconográficos (seleção): Londres 1898,1118.1 e 1929,0513.1; Filadélfia 75-35-1; Malibu 83.AE.346; Louvre CA 598 e CA 3004.

Variantes

Em algumas imagens, e.g. na arca de Cípselo e em Louvre CA598, Atena está presente durante a luta, mas a Teogonia hesiódica (318) menciona apenas seus “desígnios” (ou “planos”). Valério Flaco (7.623-4), por sua vez, relaciona a deusa com o uso do fogo e Dracôncio (Hilas, 4.50-3) atribui essa ideia diretamente a ela.

Segundo Platão, Héracles pediu a ajuda de Iolau por causa do caranguejo. Ptolomeu Quenos (apud Fócio, Biblioteca 190) informou que, segundo Aristonico de Tarento, a cabeça do meio era de ouro.

Hydra, a maior das 88 constelações conhecidas, vista quase totalmente no hemisfério sul, foi associada pelo escoliasta de Arato, Fenômenos 443 à hidra de Lerna, mas essa constelação tem, na verdade, origem babilônica.

[Apolodoro] conta que Euristeu recusou-se a reconhecer a façanha de Héracles como um dos trabalhos, pois ele recebeu ajuda de Iolau.

Influências e recepção

Este segundo trabalho, assim como o primeiro, tem nítidos antecedentes orientais: o deus sumeriano Ninurta, associado a Nippur e Lagash, matou a muš-sag-imin, ‘serpente de sete cabeças’, em uma de suas aventuras, contada em um épico do final do III milênio a.C.[3]. O deus das tempestades Hadad, de Ugarit, também matou uma serpente de sete cabeças, Lôtān, em história escrita cerca de um milênio mais tarde. E existe, ainda, a possibilidade de influências indo-europeias[4].

No Período Greco-romano, eram celebrados em Lerna mistérios associados a Dioniso e a Deméter. O lago era considerado uma das entradas do mundo dos mortos e a hidra, um dos guardiões da entrada do Tártaro. O odor fétido do Anigros, rio da Élida, era atribuído ao veneno da hidra porque alguns centauros teriam lavado ali ferimentos causados pelas flechas de Héracles[5].

Já na Antiguidade o mito era racionalizado em termos dos esforços da população local em tornar habitáveis e aráveis as terras pantanosas de Lerna, o que provavelmente ocorreu desde a Idade do Bronze. Sérvio imaginou que as cabeças da hidra eram múltiplas nascentes que irrompiam e inundavam a região, posteriormente controladas através de incêndios bem dirigidos. Paléfato, por outro lado, imaginou que Héracles era um comandante militar enviado por Euristeu para conquistar uma poderosa fortaleza de Lerna intitulada “Hidra”[6].

miniaturaHéracles, Iolau e a hidra, c. -480

Representações artísticas do início do século -VII, as mais antigas fontes do mito (e.g. Fig. 0283 e [Ilum. 0949], supra), sugerem que seus principais elementos estavam bem estabelecidos no século anterior. Desde então, a luta entre Héracles e a hidra tornou-se frequente tema de numerosas obras de arte (vasos, relevos, esculturas, mosaicos, moedas, pinturas etc.) até nossos dias. Nessas imagens, a hidra usualmente tem numerosas cabeças e, com certa frequência, Iolau e o caranguejo não aparecem (cenas “reduzidas”). A métopa que representa esse trabalho no templo de Zeus em Olímpia e pinturas modernas, por exemplo, mostram apenas Héracles e a hidra.

Nos últimos séculos, as obras artísticas mais notáveis são as de Antonio del Pollaiuolo (pintura, c. 1475); Giulio Romano (gravura, 1535); Lucas Cranach (pintura, 1537-53); Pietro Ricchi (afresco, 1632); Francisco de Zurbarán (pintura, 1634); Alessandro Algardi (bronze, c. 1650); Bernard Picart (gravura, 1733); Gustave Moreau (pintura, 1875-76); Edmund von Hofmann (estátua, 1893); John Singer Sargent (pintura, 1921). Mencionem-se, ainda, numerosas esculturas em espaços públicos da Europa, e.g. Paris, França; Madrid, Espanha; Dresden e Augsburg, Alemanha; Ruse, Bulgária; Białystok, Polônia; Helsingør, Dinamarca; Florença, Itália.

miniaturaHéracles e a hidra, 1875-1876

Na literatura antiga, a hidra de Lerna é mencionada em tragédias de Sófocles (Traquínias), Eurípides (Héracles, Íon) e Sêneca (Medeia, Hércules em Fúria, Hércules no Eta); nos diálogos Fédon e Eutidemo, de Platão; e na Eneida de Virgílio, para citar apenas as ocorrências mais importantes. Platão cita um provérbio, “nem Héracles pode lutar contra dois”, referência à ajuda que Iolau prestou ao herói. O monstro certamente inspirou o dragão de sete cabeças e dez chifres mencionado no bíblico Apocalipse de [João], em 81-96 dC e, nos séculos seguintes, diversos dragões multicéfalos.

Durante a Idade Média ocidental, a hidra podia ser encontrada em “bestiários”[7] e na História dos animais de Gessler [Ilum. 1482]; ela também figura como animal heráldico no brasão de algumas famílias europeias[8]. Na maioria dessas imagens a hidra tem patas, como seu irmão Cérbero, provável influência dos dragões (“bestas”) do livro do Apocalipse e do folclore europeu; há, efetivamente, histórias sobre dragões com várias cabeças nos folclores eslavo, lituano e da Romênia.

A hidra foi mencionada por Erasmo de Rotterdam (1525, Carta); Edmund Spenser (1590, Rainha das fadas 1.7.145-53); William Shakespeare (1608-1610, Coriolano 2.3.16-17; 3.1.94; 4.1.1-2); Machado de Assis, Confissões de uma viúva moça (Contos Fluminenses, 1870); Howard P. Lovecraft, nos contos fantásticos sobre os fictícios mitos de Cthulhu (1921-1937); Heiner Müller, no drama Héracles 2 ou a Hydra (1972); Jorge Luis Borges, no Livro dos Seres Imaginários (1974). Em 2009, o quinteto francês heavy metal Eryn Non Dae lançou um álbum intitulado Hydra Lernaïa.

miniaturaA hidra de Conrad Gessler, 1558

As múltiplas cabeças da hidra tornaram-se, desde a Renascença, sinônimo de situações complexas, com múltiplas ramificações e de difícil resolução, tanto na política quanto no dia a dia. Sua imagem representa, em última instância, a multiplicidade nociva: reis como Elizabete I (1558-1603) da Inglaterra, Henrique IV (1589-1610) da França e José I (1750-1777) de Portugal recorreram a ela para caracterizar multidões, insurgentes e outros inimigos políticos. Na Inglaterra do século XIX, políticos caracterizavam assim a oposição e, na França, a hidra foi associada ao anarco-sindicalismo; No século XXI, a polícia brasileira batizou várias operações contra organizações criminosas de “Hidra de Lerna”[9].

De 1965 em diante, diversas histórias em quadrinhos da Marvel Comics mostram uma organização terrorista fictícia, a Hydra, cujo mote é “se uma cabeça é cortada, duas outras tomarão seu lugar”, o que evoca a resiliência da organização. E, em nossa língua, a expressão “bicho-de-sete-cabeças”, coisa complicada e difícil, refere-se igualmente à hidra de Lerna[10].

Em vários filmes, desenhos animados e jogos para computador com temas mitológicos ou fantásticos, monstros com várias cabeças aparecem como poderosos inimigos enfrentados pelos personagens. Em 2009, a CineTel Films produziu um filme para TV a cabo (Hydra, dirigido por Andrew Prendergast) no qual o monstro enfrentado por Héracles volta a aterrorizar uma das ilhas do Mediterrâneo após um terremoto.

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A forma latina Hydra identifica, finalmente, um gênero de pequenos animais invertebrados de água doce, quase sempre sésseis, com corpo em forma de tubo e 4-25 finos tentáculos dispostos em torno do orifício superior. Todas as espécies têm impressionante capacidade de regeneração e novos indivíduos podem se formar a partir de pequenas partes de outro indivíduo. A atribuição, datada de 1758, é da autoria do médico e biólogo Carl Linnaeus (1707-1778) e foi inspirada pela hidra de Lerna.